terça-feira, 21 de abril de 2015

SR. GOOGLE PACHECO

Quando chegavam ao escritório pela manhã, o senhor Google Pacheco sempre estava lá. Sentado a sua mesa ou correndo de um lado para outro, mantinha-se no seu memorável ritmo agitado, produção beirando o frenesi. Os funcionários o admiravam. Era sempre o primeiro a chegar e o último a sair (embora ninguém tenha testemunhado qualquer um destes acontecimentos).
- Acho que ele dorme no escritório – alguns arriscavam.
Outros já apelavam pro exagero:
- Dizem que ele nunca dorme.
Sr. Google Pacheco. O chefe do departamento de marketing. Baixo e gordinho. Feição inocente, quase boba. Chamava a atenção pelas roupas, sempre de cores vívidas, cintilantes. Geralmente, boné azul, camiseta vermelha, calças amarelas e tênis verde. Às vezes, invertia as cores, mas nunca as abandonava. Roupas estranhas para um homem de nome estranho. A personagem perfeita para textos humorísticos.
Quando era novo na empresa, ainda apenas um singelo desconhecido, causava confusão com seu nome. Liam o crachá e diziam:
- Bom dia, sr. Gógle.
Ele corrigia, sempre sorridente e simpático.
- Não, não. Pronuncia-se Gúgou.
- Gúgou?
- É a centésima potência do número 10.
- Uau.
Até o nome carregava seu estigma de gênio absoluto. O Sr. Google era uma enciclopédia ambulante. Parecia ser senhor de todo o conhecimento. Portador de solução para os mais variados problemas na ponta da língua. Para cada desafio proposto no dia a dia da empresa, vertia um turbilhão de soluções precisas e automáticas.
Com sua eficiência derramada a cada suspiro, de auxiliar no departamento de marketing chegou à chefia em poucos meses.  Com o passar dos dias e semanas, a experiência acumulando-se nas veias, parecia saber o que as pessoas queriam antes de terminarem de falar.
- Seu Google, o senhor sabe que horas…?
- … será a reunião do conselho?
- Isso. Isso mesmo.
- 16 horas.
Era um gênio. Disposição tamanha, não demorou muito e começaram a abordar assuntos mais pessoais.
- Sr. Google, preciso de sua ajuda. Como faço para con…
- Conquistar sua melhor amiga?
- Uau. Como o senhor sabe?
E derramava soluções. Como se não bastasse a prontidão, começou a oferecer várias opções.
- Sr. Google, chocolate dá…?
- Espinha? Celulite? Cólica no bebê?
- Éééé…
- Sono? Dor de cabeça? Azia?
- Eu…
- Enxaqueca? Energia? Gases?
- Isso – disse, ruborizada. – Gases.
- Ahá. Você está com sorte, menina!
Até o poderoso e inacessível dono da empresa, cuja agenda diária se resumia a constantes viagens de negócio pela Europa, começou a passar mais tempo no Brasil. E quase todos os dias, ia na empresa. Mas nem entrava em sua sala. Já ia direto para a sala do senhor Google. Os curiosos e fofoqueiros discutiam o teor das conversas atrás daquelas portas. Uns diziam que falavam apenas sobre bolsa de valores. Acontecimentos mundiais, tendências econômicas, essas coisas. Outros achavam que a conversa só passeava pela arena dos assuntos pessoais.
Independentemente do conteúdo destes encontros a portas fechadas, a empresa só crescia. E os funcionários eram unânimes em admitir: depois da chegada do Sr. Google, a vida de todos eles se tornou mais completa e intensa.
Certo dia, o Sr. Google não apareceu para trabalhar. A princípio, pairou uma tensão camuflada no ar. A medida que as horas foram passando, e o Sr. Google não aparecia, fez-se um clima de desespero. Começaram a ligar para o seu celular, mas dava como número inexistente. Alguém tem o telefone da casa dele? O resultado foi o mesmo: número inexistente. Onde ele morava mesmo? Ninguém sabia. O desespero instalou-se no prédio. Ninguém conseguia fazer nada. Ficavam andando de um lado para outro, perdidos. Nem a dona Gertrudes conseguiu fazer o café.
Durante dias, ninguém trabalhou. Dúvidas sobre o andamento da empresa – diziam que ações da empresa estavam tendo quedas vertiginosas. Os funcionários sentiam-se curvados ante o peso dos problemas pessoais que não conseguiam resolver sem a ajuda e os conselhos do Sr. Google.
Duas semanas depois, e metade deles não mais aparecia na empresa. Dois ou três mergulharam de cabeça no alcoolismo. Outro se jogou da ponte. E o poderoso dono da empresa, quem diria, foi flagrado diversas vezes em prantos, cambaleando pelos corredores fantasmagóricos e mal-iluminados da empresa que veio à falência, dias depois.
Quanto ao sr. Google, nunca mais foi visto. Dizem por aí que montou um site e ficou milionário. Mas comprovar mesmo, ninguém nunca comprovou.

FALECEU ONTEM A PESSOA QUE ATRAPALHAVA SUA VIDA - LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

Um dia, quando os funcionários chegaram para trabalhar, encontraram na portaria um cartaz enorme, no qual estava escrito:

"Faleceu ontem a pessoa que atrapalhava sua vida na Empresa. Você está convidado para o velório na quadra de esportes".

No início, todos se entristeceram com a morte de alguém, mas depois de algum tempo, ficaram curiosos para saber quem estava atrapalhando sua vida e bloqueando seu crescimento na empresa. A agitação na quadra de esportes era tão grande, que foi preciso chamar os seguranças para organizar a fila do velório. Conforme as pessoas iam se aproximando do caixão, a excitação aumentava:

- Quem será que estava atrapalhando o meu progresso ?
- Ainda bem que esse infeliz morreu !

Um a um, os funcionários, agitados, se aproximavam do caixão, olhavam pelo visor do caixão a fim de reconhecer o defunto, engoliam em seco e saiam de cabeça abaixada, sem nada falar uns com os outros. Ficavam no mais absoluto silêncio, como se tivessem sido atingidos no fundo da alma e dirigiam-se para suas salas. Todos, muito curiosos mantinham-se na fila até chegar a sua vez de verificar quem estava no caixão e que tinha atrapalhado tanto a cada um deles.

A pergunta ecoava na mente de todos: "Quem está nesse caixão"?

No visor do caixão havia um espelho e cada um via a si mesmo... Só existe uma pessoa capaz de limitar seu crescimento: VOCÊ MESMO! Você é a única pessoa que pode fazer a revolução de sua vida. Você é a única pessoa que pode prejudicar a sua vida. Você é a única pessoa que pode ajudar a si mesmo. "SUA VIDA NÃO MUDA QUANDO SEU CHEFE MUDA, QUANDO SUA EMPRESA MUDA, QUANDO SEUS PAIS MUDAM, QUANDO SEU(SUA) NAMORADO(A) MUDA. SUA VIDA MUDA... QUANDO VOCÊ MUDA! VOCÊ É O ÚNICO RESPONSÁVEL POR ELA."

O mundo é como um espelho que devolve a cada pessoa o reflexo de seus próprios pensamentos e seus atos. A maneira como você encara a vida é que faz toda diferença. A vida muda, quando "você muda".

segunda-feira, 20 de abril de 2015

O REI PESTE - EDGAR ALLAN POE

Por volta da meia-noite de um dia do mês de outubro, durante o cavalheiresco reinado de Eduardo III, dois marinheiros pertencentes a tripulação do Free and Easy (Livre e Feliz), escuna de comércio que trafegava entre Eclusa (Bélgica) e o Tâmisa, e então ancorado neste rio, ficaram bem surpresos ao se acharem sentados na ala duma cervejaria da paróquia de Santo André, em Londres, a qual tinha como insígnia a tabuleta dum “Alegre Marinheiro”. embora mal construída, enegrecida de fuligem, acachapada de todos os outros aspectos, semelhante às demais tabernas daquela época, estava, não obstante, na opinião dos grotescos grupos de freqüentadores ali dentro espalhados, muito bem adaptada a seu fim.
Dentre aqueles grupos, formavam nossos dois marinheiros, creio eu, o mais interessante, se não o mais notável.
O que parecia mais velho e a quem seu companheiro se dirigia, chamando-o pelo característico apelido de Legs (Pernas) era também o mais alto dos dois. Mediria talvez uns dois metros e dez centímetros de altura e a inevitável conseqüência de tão grande estatura se via no hábito de andar de ombros curvados. O excesso de altura era, porém, mais que compensado por deficiências de outra natureza. Era excessivamente magro e poderia, como afirmavam seus companheiros, substituir, quando bêbedo, um galhardete no topete do mastro, ou servir de pau de bujarrona, se não estivesse embriagado. Mas essas pilhérias e outras de igual natureza jamais produziam, evidentemente, qualquer efeito sobre os músculos cachinadores do marinheiro. Com as maçãs do rosto salientes, grande nariz adunco, queixo fugidio, pesado maxilar inferior e grandes olhos protuberantes e brancos, a expressão de sua fisionomia, embora repassada duma espécie de indiferença intratável por assuntos e coisas em geral, nem por isso deixava de ser extremamente solene e séria, fora de qualquer possibilidade de imitação ou descrição. O marujo mais moço era, pelo menos aparentemente, o inverso de seu companheiro. Sua estatura não ia além de um metro e vinte. Um par de pernas atarracadas e arqueadas suportava-lhe o corpo pesado e rechonchudo, enquanto os braços, descomunalmente curtos e grossos, de punhos incomuns, pendiam balouçantes dos lados, como as barbatanas duma tartaruga-marinha. Os olhos pequenos de cor imprecisa, brilhavam-lhe encravados fundamente nas órbitas. O nariz se afundava na massa de carne, que lhe envolvia a cara redonda, cheia, purpurina. O grosso lábio superior descansava sobre o inferior, ainda mais carnudo, com um ar de complacente satisfação pessoal, mais acentuada pelo hábito que tinha o dono de lamber seus beiços, de vez em quando. E evidente que ele olhava seu camarada alto com um sentimento meio de espanto, meio de zombaria, e, quando, às vezes, erguia a vista para encará-lo, parecia o vermelho sol poente a fitar os penhascos de Ben Nevis. Várias e aventurosas haviam, porém, sido as peregrinações do digno par, pelas diversas cervejarias da vizinhança, durante as primeiras horas da noite. Mas os cabedais, por mais vastos que sejam não podem durar sempre e foi de bolsos vazios que nossos amigos se aventuraram a entrar na taberna aludida. No momento preciso, pois, em que esta estória começa, Legs e seu companheiro, Hugh Tarpaulin, estão sentados, com os cotovelos apoiados na grande mesa de carvalho, em meio da sala e a cara metida entre as mãos. Olhavam, por trás duma enorme garrafa de humming-stuff a pagar, as agourentas palavras: Não se fia, que para indignação e espanto deles, estavam escritas a giz na porta de entrada. Não que o dom de decifrar caracteres escritos – dom considerado então, entre o povo, pouco menos cabalístico do que a arte de escrever – pudesse, em estrita justiça, ter sido deixado a cargo dos dois discípulos do mar; mas havia, para falar a verdade, certa contorção no formato das letras, uma indescritível guinada no conjunto, que pressagiava, na opinião dos dois marinheiros uma longa viagem de tempo ruim, e os decidia a, imediatamente na linguagem alegórica do próprio Legs, “correr às bombas, ferrar todas as velas e correr com o vento em popa”.
Tendo, conseqüentemente, consumido o que restava da cerveja e abotoado seus curtos gibões, trataram afinal de saltar para a rua. Embora Tarpaulin houvesse, por duas vezes, entrado de chaminé adentro, pensando tratar-se da porta, conseguiram por fim com êxito a escapada, e meia hora depois da meia-noite achavam-se nossos heróis prontos para outra e correndo a bom correr por uma escura viela, na direção da Escada de Santo André, encarniçadamente perseguidos pela taberneira do “Alegre Marinheiro”.
Periodicamente, durante muitos anos antes e depois da época desta dramática estória, ressoava por toda a Inglaterra, e mais especialmente na metrópole, o espantoso grito de: “Peste!” A cidade estava em grande parte despovoada, e naqueles horríveis bairros das vizinhanças do Tâmisa, onde, entre aquelas vielas e becos escuros, estreitos e imundos, O Demônio da Peste tinha, como se dizia, seu berço, a Angústia, o Terror e a Superstição passeavam, como únicos senhores, à vontade.
Por ordem do rei, estavam aqueles bairros condenados e as pessoas proibidas, sob pena de morte, de penetrar-lhes a lúgubre solidão. Contudo, nem o decreto do monarca, nem as enormes barreiras erguidas às entradas das ruas, nem a perspectiva daquela hedionda morte que, com quase absoluta certeza, se apoderaria do desgraçado a quem nenhum perigo poderia deter de ali aventurar-se, impediam que as habitações vazias e desmobiliadas fossem despojadas, pelos rapinantes noturnos, de coisas como ferro, cobre ou chumbo, que pudessem, de qualquer maneira, ser transformadas em lucro apreciável. Verificava-se, sobretudo, por ocasião da abertura anual das barreiras, no inverno, que fechaduras, ferrolhos e subterrâneos secretos não passavam de fraca proteção para aqueles ricos depósitos de vinhos e licores que, dados os riscos e incômodos da remoção, muitos dos numerosos comerciantes, com estabelecimentos na vizinhança tinham consentido em confiar, durante o período de exílio, a tão insuficiente segurança.
Mas poucos eram, entre o povo aterrorizado, os que atribuíam tais fatos à ação de mãos humanas. Os espíritos, os duendes da peste, os demônios da febre eram, para o povo, os autores das façanhas. E tamanhas estórias arrepiantes se contavam a toda hora que toda a massa de edifícios proibidos ficou, afinal, como que envolta numa mortalha de horror e os próprios ladrões, muitas vezes, se deixavam tomar de pavor que suas depredações haviam criado e abandonaram todo o vasto recinto do bairro proibido, às trevas, ao silêncio, e à morte. Foi uma daquelas terrificas barreiras já mencionadas e que indicavam estar o bairro adiante sob a condenação da Peste que deteve, de repente a disparada em que vinham, beco adentro, Legs e o digno Tarpaulin. Arrepiar caminho estava fora de cogitação e não havia tempo a perder, pois os perseguidores se achavam quase a seus calcanhares. Para marinheiros chapados era um brinquedo subir por aquela tosca armação de madeira; exasperados pela dupla excitação do licor e da corrida, pularam sem hesitar para dentro do recinto e, continuando sua carreira de ébrios, com berros e urros, em breve se perderam naquelas profundezas intrincadas e pestilentas .
Não se achassem eles tão embriagados, a ponto de haverem perdido o senso moral, o horror de sua situação lhes teria paralisado os passos vacilantes. O ar era frio e nevoento. As pedras do calçamento, arrancadas do seu leito, jaziam em absoluta desordem, em meio do capim alto e viçoso, que lhes subia em torno dos pés e tornozelos.
Casas desmoronadas obstruíam as ruas. Os odores mais fétidos e mais deletérios dominavam por toda a parte, e, graças àquela luz lívida que, mesmo à meia-noite, nunca deixa de emanar duma atmosfera pestilencial e brumosa, podiam-se perceber, jacentes nos atalhos e becos, ou apodrecendo nas casas sem janelas, as carcaças de muitos saqueadores noturnos, detidos pela mão da peste, no momento mesmo da perpetração de seu roubo.
Mas não estava no poder de imagens, sensações ou obstáculos como esses deter a corrida de homens que, naturalmente corajosos e, especialmente naquela ocasião, repletos de coragem e de humming-stuff, teriam ziguezagueado, tão eretos quanto lhes permitia seu estado, sem temor, até mesmo dentro das fauces da morte. Na frente, sempre na frente, caminhava o disforme Legs, fazendo aquele deserto solene soar e ressoar, com berros semelhantes aos terríveis urros de guerra dos índios; e para a frente, sempre para a frente rebolava o atarracado Tarpaulin, agarrado ao gibão de seu companheiro mais ativo, levando-lhe enorme vantagem nos tenazes esforços, à moda de música vocal, com seus mugidos taurinos arrancados das profundezas de seus pulmões estentóricos.
Haviam agora evidentemente alcançado o reduto da peste. A cada passo, ou a cada tropeção, o caminho que seguiam se tornava mais fedorento e mais horrível, as veredas mais estreitas e mais intrincadas. Enormes pedras e vigas que caiam de repente dos telhados desmoronados demonstravam, com sua queda soturna e pesada, a altura prodigiosa das casas circunvizinhas; e quando lhes era necessário imediato esforço para forçar passagem através de freqüentes montões de caliça, não era raro que a mão caísse sobre um esqueleto ou pousasse num cadáver ainda com carne.
De repente, ao tropeçarem os marujos, à entrada dum elevado e sinistro edifício, um berro, mais retumbante que os outros, irrompeu da garganta do excitado Legs e lá de dentro veio uma em rápida sucessão de ferozes e diabólicos guinchos, semelhantes a risadas. Sem se intimidarem com aqueles sons que, pela sua natureza, pela ocasião e pelo lugar, teriam gelado todo o sangue de corações menos irrevogavelmente incendiados, o par de bêbados embarafustou pela porta, escancarando-a e, cambaleantes, com um chorrilho de pragas, se viram em meio dum montão de coisas.
A sala em que se encontravam era uma loja de cangalheiro; mas um alçapão, a um canto do soalho, perto da entrada, dava para uma longa fileira de adegas, cujas profundezas, reveladas pelo ocasional rumor de garrafas que se partiam, estavam bem sortidas do conteúdo apropriado. No meio da sala havia uma mesa, em cujo centro se erguia uma enorme cuba, cheia, ao que parecia, de ponche. Garrafas de vários vinhos e cordiais, juntamente com jarros, pichéis e garrafões de todo formato e qualidade, estavam espalhadas profusamente pela mesa. Em torno desta via-se um grupo de seis indivíduos sentados em catafalcos. Vou tentar descrevê-los um por um.
Em frente à porta de entrada e em plano acima dos companheiros estava sentado um personagem que parecia ser o presidente da mesa. Era descarnado e alto, e Legs sentiu-se confuso ao notar nele um aspecto mais emaciado do que o seu. Tinha o rosto açafroado, mas nenhum de seus traços, exceção feita de um, era bastante característico para merecer descrição especial. Aquele traço único consistia numa fronte tão insólita e tão horrivelmente elevada que tinha a aparência de um boné ou coroa de carne acrescentada à cabeça natural. Sua boca, enrugada, encovava-se numa expressão de afabilidade horrível, e seus olhos, bem como os olhos de todos quantos se achavam em torno à mesa, tinham aquele humor vítreo da embriaguez. Esse cavalheiro trajava, da cabeça aos pés, mortalha de veludo de seda negra, ricamente bordada, que lhe envolvia, com displicência, o corpo à moda duma capa espanhola. Estava com a cabeça cheia de plumas negras mortuárias, que ele fazia ondular para lá e para cá, com um ar afetado e presunçoso e na mão direita segurava um enorme fêmur humano, com o qual parecia ter acabado de bater em algum dos presentes para que cantasse. Defronte dele, e de costas para a porta, estava uma mulher de fisionomia não menos extraordinária. Embora tão alta quanto o personagem que acabamos de descrever, não tinha direito de se queixar da mesma magreza anormal. Encontrava-se, evidentemente, no derradeiro grau de uma hidropisia e seu todo era bem semelhante ao imenso pipote de cerveja-de-outubro que se erguia, de tampa arrombada, a seu lado, a um canto do aposento. Seu rosto era excessivamente redondo, vermelho e cheio e a mesma peculiaridade, ou antes falta de peculiaridade, ligada à sua fisionomia, que já mencionei no caso do presidente, isto é, somente uma feição de seu rosto era suficientemente destacada para merecer caracterização especial. De fato, o perspicaz Tarpaulin notou logo que a mesma observação podia ser feita a respeito de um dos indivíduos ali presentes. Cada um deles parecia monopolizar alguma porção particular de fisionomia. Na dama em questão, essa parte era a boca. Começando na orelha direita, rasgava-se, em aterrorizante fenda, até a esquerda. Ela fazia, no entanto, todos os esforços para conservar a boca fechada, com ar de dignidade. Seu traje consistia num sudário, recentemente engomado e passado a ferro, chegando-lhe até o queixo, com uma gola encrespada de musselina de cambraia. À sua direita sentava-se uma mocinha chocha, a quem ela parecia amadrinhar. Essa delicada criaturinha deixava ver, pelo tremor de seus dedos descarnados, pela lívida cor de seus lábios e pela leve mancha héctica que lhe tingia a tez, aliás cor de chumbo, sintomas de tuberculose galopante. Um ar de extrema distinção, porém, dominava em toda a sua aparência. Usava, duma maneira graciosa e negligente, uma larga e bela mortalha da mais fina cambraia, indiana. Seu cabelo caía-lhe em cachos sobre o pescoço. Um leve sorriso pairava-lhe nos lábios, mas seu nariz extremamente comprido, delgado, sinuoso, flexível e cheio de borbulhas, acavalava por demais sobre o lábio inferior; e, a despeito da delicada maneira pela qual ela, de vez em quando, o movia para um lado e outro com a língua, dava-lhe à fisionomia uma expressão um tanto quanto equívoca.
Do outro lado, e à esquerda da dama hidrópica, estava sentado um velho pequeno, inchado, asmático e gotoso, cujas bochechas lhe repousavam sobre os ombros como dois imensos odres de vinho do Porto. De braços cruzados e uma perna enfaixada posta sobre a mesa, parecia achar-se com direito a alguma consideração. Evidentemente orgulhava-se bastante de cada polegada de sua aparência pessoal, mas sentia mais especial deleite em chamar a atenção para seu sobretudo de cores vistosas. Para falar a verdade, não deveria este ter custado pouco dinheiro e lhe assentava esplendidamente bem, talhado como estava em uma dessas cobertas de seda, curiosamente bordadas, pertencentes àqueles gloriosos escudos que, na Inglaterra e noutros lugares, são ordinariamente suspensos, em algum lugar patente, nas residências de aristocratas falecidos.
Junto dele, e à direita do presidente, via-se um cavalheiro, com compridas meias brancas e ceroulas de algodão. Seu corpo tremelicava de maneira ridícula, num acesso daquilo que Tarpaulin chamava “os terrores”. Seus queixos, recentemente barbeados, estavam estreitamente atados por uma faixa de musselina, e, tendo os braços amarrados nos pulsos da mesma maneira, não lhe era possível servir-se muito à vontade, dos licores que se achavam sobre a mesa, precaução necessária, na opinião de Legs, graças à expressão caracteristicamente idiota e tremulenta de seu rosto. Sem embargo, um par de prodigiosas orelhas, que sem dúvida era impossível ocultar, alteava-se na atmosfera do aposento e, de vez em quando, arrebitavam-se espasmodicamente ao rumor das rolhas que espoucavam. Defronte dele, sentava-se o sexto e último personagem, de aparência rígida que, sofrendo de paralisia, devia sentir-se, falando sério, muito mal à vontade nos seus trajes nada cômodos. Essa roupa um tanto singular, consistia em um novo e belo ataúde de mogno. Sua tampa ou capacete apertava-se sobre o crânio do sujeito e estendia-se sobre ele, à moda de um elmo, dando-lhe a todo o rosto um ar de indescritível interesse. Cavas para os braços tinham sido cortadas dos lados, mais por conveniência que por elegância; apesar disso, o traje impedia seu proprietário de se sentar direito como seus companheiros. E como se sentasse reclinado de encontro a um cavalete, formando um ângulo de quarenta e cinco graus, um par de enormes olhos esbugalhados revirava suas apavorantes escleróticas para o teto, num absoluto espanto de sua própria enormidade.
Diante de cada um dos presentes estava a metade dum crânio, usada como copo. Por cima, pendia um esqueleto humano, pendurado duma corda amarrada numa das pernas e presa a uma argola no forro. A outra perna, sem nenhuma amarra, saltava do corpo em angulo reto, fazendo flutuar e girar toda a carcaça desconjuntada e chocalhante, ao sabor de qualquer sopro de vento que penetrasse no aposento. O crânio daquela hedionda coisa continha certa quantidade de carvão em brasa, que lançava uma luz vacilante, mas viva, sobre a cena, enquanto ataúdes e outras mercadorias de casa mortuária empilhavam-se até o alto, em toda a sala e contra as janelas, impedindo assim que qualquer raio de luz se projetasse na rua.
À vista de tão extraordinária assembléia e de seus mais extraordinários adornos, nossos dois marujos não se conduziram com aquele grau de decoro que era de esperar. Legs, encostando-se à parede junto da qual se encontrava, deixou cair o queixo ainda mais baixo do que de costume e arregalou os olhos até mais não poder, quanto Hugh Tarpaulin, abaixando-se a ponto de colocar o nariz ao nível da mesa e dando palmadas nas coxas, explodiu numa desenfreada e extemporânea gargalhada, que mais parecia um rugido longo, poderoso e atroador.
Sem, no entanto, ofender-se diante de procedimento tão excessivamente grosseiro, o escanifrado presidente sorriu com toda a graça para os intrusos, fazendo-lhes um gesto cheio de dignidade com a cabeça empenachada de negro, e, levantando-se, pegou-os pelos braços e levou-os aos assentos que alguns dos outros presentes tinham colocado, enquanto isso, para que eles estivessem a cômodo. Legs nenhuma resistência ofereceu a tudo isso sentando-se no lugar indicado, ao passo que o galanteador Hugh removendo cavalete de ataúde do lugar perto da cabeceira da mesa para junto da mocinha tuberculosa, da mortalha ondulante derreou-se a seu lado, com grande júbilo, e, emborcando um crânio de vinho vermelho, esvaziou-o em honra de suas mais íntimas relações. Diante de tamanha presunção, o cavalheiro teso do ataúde mostrou-se excessivamente exasperado, e sérias conseqüências poderiam ter-se seguido não houvesse o presidente, batendo com o bastão na mesa, distraído a atenção de todos os presentes para o seguinte discurso:
– É nosso dever nosso na atual feliz ocasião.
– Pare com isso! – interrompeu Legs, com toda a seriedade. Cale essa boca, digo- lhe eu, e diga-nos que diabos são vocês todos e que estão fazendo aqui, com essas farpelas de diabos sujos e bebendo a boa pinga armazenada para o inverno pelo meu honrado camarada Will Wimble, o cangalheiro!
À vista daquela imperdoável amostra de má educação, toda a esquipática assembléia se soergueu e emitiu aqueles mesmos rápidos e sucessivos guinchos ferozes e diabólicos que já haviam chamado antes a atenção dos marinheiros. O presidente, porém, foi primeiro a retomar sua compostura e por fim, voltando-se para Legs com grande dignidade, recomeçou:
– De muito boa-vontade satisfaremos qualquer curiosidade razoável da parte de hóspedes tão ilustres, embora não convidados. Ficai, pois, sabendo que, nestes domínios, sou o monarca e governo, com indivisa autoridade, com o título de “Rei Peste I.” Esta sala, que supondes injuriosamente ser a loja do cangalheiro Will Wimble, homem que não conhecemos e cujo sobrenome plebeu jamais ressoara, até esta noite, aos nossos reais ouvidos… esta sala, repito, é a Sala do Trono de nosso palácio. Consagrada aos conselhos de nosso reino e outros destinos de natureza sagrada e superior.
A nobre dama sentada à nossa frente é a Rainha Peste, nossa Sereníssima Esposa. Os outros personagens ilustres que vedes pertencem todos à nossa família e usam as insígnias do sangue real nos respectivos títulos de: “Sua Graça o Arquiduque Peste-Ifero”, “Sua Graça o Duque Pest- Ilencial”, “Sua Graça o Duque Tem-Pestuoso” e “Sua Serena Alteza a Arquiduquesa Ana-Peste”.
Quanto à vossa pergunta – continuou ele -, a respeito do que nos trás aqui reunidos em conselho, ser-nos-ia lícito responder que, concerne e concerne exclusivamente, ao nosso próprio e particular interesse e não tem importância para ninguém mais que não nós mesmos. Mas em consideração aos direitos de que, na qualidade de hóspedes e estrangeiros, possais julgar-vos merecedores, explicar-vos-emos entanto, que estamos aqui, esta noite, preparados por intensa pesquisa e acurada investigação, a examinar, analisar e determinar, indubitavelmente, o indefinível espírito, as incompreensíveis qualidades e natureza desses inestimáveis tesouros do paladar que são os vinhos, cervejas e licores desta formosa metrópole. Assim procedemos não só para melhorar nossa própria situação, mas para o bem-estar verdadeiro daquela soberana sobrenatural que reina sobre todos nós, cujos domínios não têm limites e cujo nome é “Morte”.
– Cujo nome é Davi Jones! – exclamou Tarpaulin, oferecendo à sua vizinha um crânio de licor e emborcando ele próprio um segundo.
– Lacaio profanador! – exclamou o presidente, voltando agora para o digno Hugh. – Miserável e execrando profanador. Dissemos que, em consideração àqueles direitos que, mesmo na tua imunda pessoa, não nos sentimos com inclinação para violar, condescendemos em responder às tuas grosseiras e desarrazoadas indagações. Contudo, tendo em vista a vossa profana intrusão no recinto de nossos conselhos, acreditamos ser de nosso dever multar-te a ti e a teu companheiro, num galão de Black Strap, que bebereis pela prosperidade de nosso reino, dum só gole e de joelhos; logo depois estareis livres para continuar vosso caminho ou permanecerdes e serdes admitidos aos privilégios de nossa mesa, se acordo com vossos respectivos gostos pessoais.
– Será coisa de absoluta impossibilidade – replicou Legs, a quem a imponência e a dignidade do Rei Peste I tinham evidentemente inspirado alguns sentimentos de respeito, e que se levantara, ficando de pé junto da mesa, enquanto aquele falava.
– Será, com licença de Vossa Majestade, coisa extremamente impossível arrumar no meu porão até mesmo a quarta parte desse tal licor que vossa Majestade acaba de mencionar. Não falando das mercadorias colocadas esta manhã a bordo para servir de lastro, e não mencionando as várias cervejas e licores embarcados esta noite em vários portos, tenho, presentemente, uma carga completa de humming-tuff, entrada e devidamente paga na taberna do “Alegre Marinheiro”. De modo que há de Vossa Majestade ter a bondade de tomar a tenção como coisa realizada, pois não posso de modo algum, nem quero, engolir outro trago e muito menos um trago dessa repugnante água-de-porão que responde ao nome de Black Strap.
– Pare com isso! – interrompeu Tarpaulin, espantado não só pelo tamanho do discurso de seu companheiro como pela natureza de sua recusa. – Pare com isso, seu marinheiro de água doce! Repito, Legs, pare com esse palavreado! O meu casco está ainda leve, embora, confesse-o, esteja o seu mais pesado em cima que em baixo. Quanto à estória de sua parte da carga, em vez de provocar uma borrasca, acharei jeito de arrumá-la eu mesmo no porão, mas…
– Este modo de proceder – interferiu o presidente – não está de modo algum em acordo com os termos da multa ou sentença que é de natureza média e não pode ser alterada nem apelada. As condições que impusemos devem ser cumpridas à risca, e isto sem um instante de hesitação… sem o quê, decretamos que sejais amarrados, pescoços e calcanhares juntos, e devidamente afogados, rebeldes, naquela pipa de cerveja-de-outubro!
– Que sentença! Que sentença! Que sentença justa e direita! decreto glorioso! A condenação mais digna, mais irrepreensível, sagrada! – gritaram todos os membros da família Peste ao mesmo tempo.
O rei franziu a testa em rugas inumeráveis; o homenzinho gotoso soprava, como um par de foles; a dona da mortalha de cambraia movia o nariz para um lado para o outro; o cavalheiro de ceroulas de algodão arrebitou as orelhas; a mulher do sudário ofegava como um peixe agonizante, e o sujeito do ataúde entesou-se mais, arregalando os olhos para cima.
– Oh, uh, uh! – ria Tarpaulin, entre dentes, sem notar a excitação geral. – Uh, uh, … Uh, uh, uh… Estava eu dizendo quando aqui o Sr. Rei Peste veio meter seu bedelho, que a respeito da questão de dois ou três galões mais ou menos de Black Strap era uma bagatela para um barco sólido como eu que não está sobrecarregado; e quando se tratar de beber à saúde do Diabo (que Deus lhe perdoe) e de me pôr de joelhos diante dessa horrenda majestade aqui presente, que eu conheço tão bem como sei que sou um pecador, e que não é outro senão Tim Hurlygurly, o palhaço!… Ora essa, é muito outra coisa, e vai muito além de minha compreensão.
Não lhe permitiram que terminasse tranqüilamente seu discurso ao nome de Tim Hurlygurly, todos os presente pularam dos assentos.
– Traição! – gritou Sua Majestade o Rei Peste I.
– Traição! – disse o homenzinho gotoso.
– Traição! – esganiçou a Arquiduquesa Ana-Peste.
– Traição! – murmurou o homem dos queixos amarrados.
– Traição! – grunhiu o sujeito do ataúde.
– Traição, traição! – berrou Sua Majestade, a mulher da bocarra. E, agarrando o infeliz Tarpaulin pela traseira das calças, o qual estava justamente enchendo outro crânio de licor, ergueu-o no ar e deixou-o bem alto no ar, e deixou-o cair sem cerimônia no imenso barril aberto de sua cerveja predileta. Boiando para lá e para cá, durante alguns segundos, como uma maçã numa tigela de ponche, desapareceu afinal no turbilhão de espuma que, no já efervescente licor, haviam provocado seus esforços de safar-se.
Não se resignou, porém, o marinheiro alto com a derrota de seu camarada. Empurrando o Rei Peste para dentro do alçapão aberto, Legs deixou cair a tampa do alçapão sobre ele, com uma praga, e correu para o meio da sala. Ali, puxando para baixo o esqueleto que pendia sobre a mesa, com tamanha força e vontade que o fez que conseguiu fazer saltar os miolos do homenzinho gotoso, ao tempo que morriam os derradeiros lampejos de luz dentro da sala.
Precipitando-se, então, com toda a sua energia, contra a pipa fatal cheia de cerveja-de-outubro e de Hugh Tarpaulin, revirou-a, num instante, de lado. Dela jorrou um dilúvio de licor tão impetuoso, violento, tão irresistível, que a sala ficou inundada de parede a parede, as mesas carregadas viraram de pernas para o ar, os cavaletes rebolaram uns por cima dos outros, a tina de ponche foi lançada na chaminé da lareira… e as damas caíram com ataques histéricos. Montes de artigos fúnebres boiavam. Jarros, pichéis e garrafões confundiam-se, numa misturada enorme, e as garrafas de vime embatiam-se, desesperadamente, com cantis trançados. O homem dos tremeliques afogou-se imediatamente. O sujeito flutuava no seu caixão… e o vitorioso Legs, agarrando pela cintura pela criatura a mulher gorda do sudário, arrastou-a para a rua e em linha reta, a direção do Free and Easy, seguido, a bom pano, pelo temível Hugh Tarpaulin, que, tendo espirrado três ou quatro vezes, ofegava e bufava atrás dele, puxando a Arquiduquesa Ana-Peste.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Sobre Processo Penal e a vida e a morte em 100% de audiências brasileiras - EDUARDO GALEANO

inquisicao

Somos todos culpados


O Directorium Inquisitorium publicado pela Santa Inquisição no século XIV, difundiu as regras do suplício, e a mais importante ordenava:
Será torturado o acusado que vacile em suas respostas.

UM CANÁRIO PARA OFERECER - ERNEST HEMINGWEY

O comboio passou a grande velocidade por uma casa comprida, de pedra vermelha, com um jardim e quatro palmeiras grossas com mesas por baixo, à sombra. Do outro lado havia mar. Depois houve um caminho de pedra vermelha e barro, e só se via o mar ocasionalmente e muito lá para baixo, contra as rochas.
– Comprei-o em Palermo – disse a senhora americana – Só tínhamos uma hora em terra e era domingo de manhã. O homem queria ser pago em dólares e eu dei-lhe um dólar e meio. Canta lindamente.
Estava muito calor no comboio e estava muito calor no compartimento lit salon4. Não entrava uma brisa pela janela aberta. A senhora americana puxou o estore para baixo e deixou de haver mar, nem mesmo ocasionalmente. Do outro lado havia vidro, depois o corredor, depois uma janela aberta e para lá da janela aberta havia árvores empoeiradas e uma estrada de asfalto e campos lisos de uvas com colinas de pedra cinzenta por trás.
Havia fumo de várias chaminés altas – ao chegar a Marseilles, e o comboio abrandou e seguiu um trilho por entre muitos outros até à estação. O comboio esteveparado por vinte e cinco minutos na estação em Marseilles e a senhora americana comprou um exemplar do Daily Mail e uma garrafa Evian de meio litro de água. Deu um pequeno passeio ao longo da plataforma da estação, mas permaneceu perto dos degraus da carruagem, porque em Cannes, onde parara por doze minutos, o comboio partira sem dar sinal e ela embarcara mesmo em cima da hora. A senhora americana era um pouco surda e receava que talvez os apitos da partida soassem e ela não os ouvisse.
O comboio saiu da estação de Marseilles e não havia apenas o pátio de manobras e o fumo da fábrica, mas, olhando para trás, a cidade e o porto com colinas de pedra por trás, e os últimos raios do sol na água. Quando começou a escurerer, o comboio passou por uma quinta com uma casa em chamas. Havia carros parados pela rua e as camas e coisas de dentro da casa estavam espalhadas no campo. Muitas pessoas observavam a casa em chamas. Depois de escurecer o comboio chegou a Avignon. Houve pessoas entrar e sair. No quiosque, franceses, regressando de Paris, compravam os jornais diários franceses. Na plataforma da estação havia soldados negros. Usavam uniformes castanhos e eram altos e as suas caras reluziam, mesmo em baixo das luzes elétricas. As caras eram muito negras e eram demasiado altos para se poder olhar bem. O comboio deixou a estação de Avignon, com os negros lá. Um sargento baixo e branco estava com eles.
Dentro do lit salon o cabineiro baixara da parede e preparara as três camas para a noite. À noite a senhora americana, deitada, não dormia, pois o comboio era um rapide5 e andava muito depressa, e ela receava a velocidade à noite. A cama da senhora americana era a que ficava ao pé da janela. O canário de Palermo, com um pano em cima da gaiola, ficara abrigado da corrente de ar, no corredor que dava para o compartimento dos lavabos. Havia uma luz azul fora do compartimento e durante toda a noite o comboio andou muito rápido, e a senhora americana manteve-se acordada, esperando um acidente.
De manhã o comboio estava perto de Paris, e depois de a senhora americana ter saído da casa de banho, com uma aparência muito saudável e de meia-idade e americana, apesar de não ter dormido, e de ter tirado o pano da gaiola e pendurado a gaiola ao sol, voltou à carruagem-restaurante para tomar o pequeno-almoço. Quando voltou para o lit-salon, as camas tinham sido colocadas na parede e transformadas emassentos, o canário agitava as penas à luz do sol que entrava pela janela aberta, e o comboio estava muito mais próximo de Paris.
– Ele adora o sol – disse a senhora americana. – Vai cantar daqui a pouco.
O canário abanou as penas e debicou-as.
– Sempre gostei de pássaros – disse a senhora americana. – Vou levá-lo para casa, para a minha menina. Aí está…escutem como canta.
O canário chilreou e as penas da sua garganta eriçaram-se, e ele baixou o bico e debicou novamente as penas. O comboio atravessou um rio e passou através de uma floresta muito bem cuidada. O comboio passou por muitas cidades nos arredores de Paris. Havia carros-elétricos nas cidades e grandes cartazes publicitários da Belle Jardinière e Dubonnet e Pernod nas paredes viradas para o comboio. Tudo por que o comboio passava fazia crer que era antes do pequeno-almoço. Durante vários minutos, não dei atenção ao que dizia a senhora americana, que falava com a minha mulher.
– O seu marido também é americano? – perguntou a senhora.
– Sim – disse a minha mulher – Somos ambos americanos.
– Pensei que fossem ingleses.
– Oh, não.
– Talvez o tenha pensado porque uso suspensórios6 – disse eu. Tinha começado a dizer a expressão americana, mas mudei rapidamente para a expressão inglesa, para manter o meu carácter inglês. A senhora americana não ouviu. Era mesmo bastante surda; lia nos lábios, e eu não estava virado para ela. Estava a olhar pela janela. Ela continuou a falar com a minha mulher.
– Fico tão contente por serem americanos. Os homens americanos dão os melhores maridos – dizia a senhora americana – Por isso é que deixámos o Continente, sabe. A minha filha apaixonou-se por um homem em Vevey. – Fez uma pausa. – Estavam simplesmente loucos de amor. – Fez novamente uma pausa – Levei-a para longe, naturalmente.
– Ela esqueceu-o? – perguntou a minha esposa.
– Penso que não – disse a senhora americana. – Não comia e não dormia de todo. Tentei de tudo, mas parece que não se interessa por nada. Não quer saber de nada.Eu não ia permitir que ela casasse com um estrangeiro. – Fez uma pausa. – Alguém, uma pessoa muito amiga disse-me: Nenhum estrangeiro pode dar um bom marido para uma rapariga americana.
– Pois – disse a minha esposa, – suponho que não.
A senhora americana admirou o casaco de viajar da minha esposa, e chegou-se à conclusão de que a senhora americana comprava roupa há vinte anos na mesma casa de couture7, na rue Saint Honoré. Tinham lá as suas medidas, e uma vendeuse8 que a conhecia, e aos seus gostos, escolhia os vestidos para ela, e eram-lhe enviados para a América. Iam para o posto dos correios perto de onde ela vivia, na parte chique de Nova Iorque e nunca eram extravagantes, porque abriam os vestidos lá no posto dos correios para os avaliar, e eram sempre bastante simples e sem renda dourada ou ornamentos que lhes pudessem dar a aparência de serem caros. Antes desta vendeuse, chamada Thérèse, houvera outra vendeuse, chamada Amélie. Ao todo tinha havido apenas estas duas, durante vinte anos. Era sempre o mesmo couturier9. Contudo, os preços haviam subido. Apesar disso, o câmbio compensava a diferença. Tinham também as medidas da filha. Era adulta e não havia muita hipótese de agora mudarem.
O comboio entrava agora em Paris. As fortificações eram planas, mas não tinha crescido relva. Havia muitas carruagens estacionadas nos trilhos - carruagens-restaurante e carruagens-cama de madeira castanha que seguiriam para Itália às cinco horas daquela tarde, se é que o comboio ainda saía às cinco; as carruagens estavam assinaladas com Paris-Roma, e carruagens com assentos na cobertura, que andavam para trás e para a frente nos subúrbios a certas horas, pessoas em todos os assentos e na cobertura, se é que ainda as faziam assim, e ao passar havia paredes brancas e muitas janelas de casas. Ninguém tomara o pequeno-almoço.
– Os americanos dão os melhores maridos – disse a senhora americana à minha mulher. Eu estava a pôr as malas no chão.
– Os homens americanos são os únicos homens no mundo com quem casar.
– Há quando tempo deixou Vevey?– perguntou a minha esposa.
– Farão dois anos este Outono. Sabe, é para ela que levo este canário.
– O homem pelo qual a sua filha se apaixonou era suíço?
– Sim – disse a senhora americana – Era de uma boa família de Vevey. Ia ser engenheiro. Conheceram-se lá. Costumavam dar longos passeios juntos.
– Conheço Vevey – disse a minha mulher. – Estivemos lá na nossa lua-de-mel.
– Estiveram mesmo? Deve ter sido um encanto. É claro que eu não fazia ideia que ela se ia apaixonar por ele.
– Era um sítio mesmo encantador – disse a minha mulher.
– O velho hotel é tão agradável – disse a senhora Americana.
– Sim – disse a minha mulher – Estivemos num quarto muito agradável e no Outono a região estava encantadora.
– Estiveram lá no Outono?
– Sim – disse a minha mulher.
Estávamos a passar por três carruagens que haviam tido um acidente. Estavam despedaçadas e as coberturas tinham cedido para dentro.
– Olhem – disse eu – Houve um acidente.
A senhora Americana olhou e viu a última carruagem.
– Estive toda a noite com receio precisamente disto – disse ela – Por vezes tenho pressentimentos terríveis acerca de coisas. Nunca mais viajarei à noite num rapide. Deve haver outros comboios confortáveis que não andem tão rápido.
Depois o comboio entrou na escuridão da Gare de Lyons e depois parou e os bagageiros vieram às janelas. Entreguei malas pelas janelas, e saímos para a escura, longa plataforma, e a senhora Americana pôs-se no comando de um dos três homens da Cook’s que disse:
– Um momento, madame, vou procurar o seu nome.
O bagageiro trouxe um carro para a bagagem e empilhou-a, e a minha mulher despediu-se, e eu despedi-me da senhora Americana, cujo nome tinha sido encontrado pelo homem da Cook’s numa página escrita à máquina, num molhe de páginas datilografadas que voltou a guardar no seu bolso.
Seguimos o bagageiro com o carro pela longa plataforma de cimento, ao pé do comboio. Havia uma cancela na extremidade e um homem ficava com os bilhetes.
Voltávamos a Paris para nos estabelecermos em residências separadas.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Sobre Positivismo e muito de Direitos das mulheres - EDUARDO GALEANO

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Susan também não pagou


Os Estados Unidos da América vs. Susan Anthony, Distrito Norte de Nova York, 18 de junho de 1873.
Promotor distrital Richard Crowley: No dia 5 de novembro de 1872, Susan B. Anthony votou num representante no Congresso dos Estados Unidos da América. Naquele momento era ela mulher, e suponho que não haverá dúvidas em relação a isso. Ela não tinha direito de voto. É culpada de violar a lei.
Juiz Ward Hunt: A prisioneira foi julgada de acordo com o estabelecido na lei.
Susan Anthony: Sim, Senhoria, mas são leis feitas pelos homens, interpretadas pelos homens e administradas pelos homens a favor dos homens e contra as mulheres.
Juiz Ward Junt: Que a prisioneira fique de pé. A sentença desta Corte manda que ela pague uma multa de cem dólares mais as custas do processo.
Susan Anthony: Não pago nem um tostão.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

SOBRE DIREITOS E LIBERDADES CIVIS - EDUARDO GALEANO

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A mãe e o pai dos direitos civis


Num ônibus que circulava pelas ruas de Montgomery, Alabama, uma passageira negra, Rosa Parks, negou-se a ceder seu assento a um passageiro branco.
O motorista chamou a polícia.
Chegaram os guardas, disseram: lei é lei, e prenderam Rosa por perturbar a ordem pública.
Então um pastor desconhecido, Martin Luther King, propôs, em sua igreja, um boicote contra os ônibus. E propôs assim:

A Covardia pergunta:
- É seguro?
A Conveniência pergunta:
- É oportuno?
E a Vaidade pergunta:
- É popular?
Mas a Consciência pergunta:
- É justo?

Ele também foi preso. O boicote durou mais de um ano e desencadeou uma maré irrefreável, de costa a costa, contra a discriminação racial.
Em 1968, na cidade sulina de Memphis, um tiro arrebentou o rosto do pastor King, quando ele estava denunciando que a máquina militar comia negros no Vietnã.
De acordo com o FBI, ele era um sujeito perigoso.
Como Rosa. E como muitos outros pulmões do vento.

terça-feira, 14 de abril de 2015

SOBRE JUDICIÁRIO NA DITADURA OU "IN DUBIO PRO HELL" - EDUARDO GALEANO

ditadura

A Justiça nos tempos de Franco


Acima, no alto do estrado, envergando sua toga negra, o presidente do tribunal.
À direita, o advogado.
À esquerda, o promotor.
Degraus abaixo, o banco dos réus, ainda vazio,
Um novo julgamento vai começar.
Dirigindo-se ao meirinho, o juiz, Algonso Hernández Pardo, ordena:
- Faça o condenado entrar.