terça-feira, 20 de janeiro de 2015

COLINAS COMO ELEFANTES BRANCOS - ERNEST HEMINGWAY

As colinas do outro lado do vale do Ebro eram compridas e brancas. Do lado de
cá não havia sombra nem árvores e a estação ficava ao sol entre duas linhas de carris.
Junto à parede da estação havia a sombra quente do edifício e uma cortina, feita de
fiadas de missangas de bambu, pendia pela porta aberta que dava para o bar, impedindo
que as moscas entrassem. O americano e a rapariga que estava com ele estavam
sentados numa mesa à sombra, no exterior do edifício. Estava muito calor e o expresso
de Barcelona chegaria dentro de quarenta minutos. Parava nesta junção por dois
minutos e seguia para Madrid.
– O que vamos beber? – perguntou a rapariga. Tirara e pousara o chapéu em
cima da mesa.
– Está muito calor – disse o homem.
– Vamos beber cerveja.
– Dos cervezas – disse o homem na direção da cortina.
– Das grandes? – perguntou uma mulher da porta.
– Sim. Duas grandes.
A mulher trouxe dois copos de cerveja e duas bases para copos em feltro. Pôs as
bases e os copos de cerveja na mesa e olhou para o homem e para a rapariga. A rapariga
olhava para a linha das colinas. Eram brancas ao sol e a região era toda castanha e seca.
– Parecem elefantes brancos – disse ela.
– Nunca vi um. – O homem bebia a sua cerveja.
– Não me parece que tenhas visto.
– Podia ter visto. – Disse o homem. – Só porque dizes que não te parece que
tenha visto não prova coisa nenhuma. A rapariga olhou para a cortina de missangas.
– Pintaram ali alguma coisa – disse ela. – O que é que está escrito?
– Anis del Toro3
. É uma bebida.
– Podemos prová-la?
O homem chamou “Faz favor” através da cortina. A mulher saiu de dentro do
bar.
– Quatro reales.
– Ele quer dois Anis del Toro
– Com água?
– Queres com água?
– Não sei – disse a rapariga. – Fica bem com água?
– Não fica mal.
– Querem com água? – perguntou a mulher.
– Sim, com água.
– Sabe a alcaçuz – disse a rapariga e pousou o copo.
– É assim com tudo.
– Sim – disse a rapariga – Tudo sabe a alcaçuz. Especialmente as coisas por que
esperamos por tanto tempo, como por exemplo o absinto.
– Oh, para com isso.
– Tu é que começaste – disse a rapariga. – Eu estava a divertir-me. Estava a
passar um bom bocado.
– Bem, vamos tentar passar um bom bocado.
– Tudo bem. Eu estava a tentar. Disse que as montanhas pareciam elefantes
brancos. Não foi um comentário interessante?
– Sim, foi.
– Quis experimentar esta bebida nova. É o que estamos sempre a fazer, não é?
Olhar para as coisas e experimentar bebidas novas?
– Suponho que sim.
A rapariga olhou para as colinas.
– São colinas encantadoras – disse ela. – Não se parecem lá muito com elefantes
brancos. Referia-me apenas à sua cor, por entre das árvores.
– Pedimos outra bebida?
– Está bem.
O vento quente soprou fazendo a cortina de missangas bater contra a mesa.
– A cerveja está boa e fresca – disse o homem.
– Está ótima – disse a rapariga.
– É de facto uma operação bastante simples, Jig – disse o homem. – Na verdade,
nem é sequer uma operação.
A rapariga olhou para o chão, onde as pernas da mesa assentavam.
– Eu sei que não te irias importar, Jig. Não é nada. É só deixar entrar ar.
A rapariga não respondeu. 
– Vou contigo e fico lá o tempo todo. Eles apenas deixam o ar entrar e depois é
tudo perfeitamente natural.
– E o que fazemos depois?
– Depois vai-nos correr tudo bem. Tal como era antes.
– O que te leva a pensar assim?
– Isso é a única coisa que nos aborrece. Foi a única coisa que nos tornou
infelizes.
A rapariga olhou para a cortina de missangas, estendeu a mão e pegou em duas
fiadas.
– E tu achas que vai correr tudo bem e que vamos ser felizes.
– Sei que vamos. Não tens de ter medo. Conheço muitas pessoas que o fizeram.
– Também eu – disse a rapariga. – E depois ficaram todas muito felizes.
– Bem – disse o homem, – se não quiseres não tens de o fazer. Não te ia obrigar
se não quisesses. Mas sei que é muito simples.
– E tu queres mesmo?
– Acho que é o melhor que temos fazer. Mas não quero que o faças se não
quiseres mesmo.
– E se fizer ficas feliz e as coisas voltam a ser como eram e tu vais-me amar?
– Já te amo. Tu sabes que te amo.
– Eu sei. Mas se o fizer, volta a ser engraçado eu comparar coisas a elefantes
brancos, e tu vais achar piada ao comentário?
– Vou achar muita piada. Já acho agora, mas não consigo pensar nisso. Sabes
como fico quando estou preocupado.
– Se eu o fizer não voltas a ficar preocupado?
– Não me vou preocupar com isso porque é mesmo simples.
– Então vou fazê-lo. Porque não quero saber de mim.
– O que queres dizer com isso?
– Não quero saber de mim.
– Bem, eu quero saber de ti
– Oh, sim. Mas eu não quero saber de mim. E vou fazê-lo e depois vai ficar tudo
bem.
– Não quero que o faças se é isso que sentes.
A rapariga levantou-se e caminhou até ao fim da plataforma da estação. Do
outro lado havia campos de cereais e árvores ao longo das margens do Ebro. Ao longe, para além do rio, havia montanhas. A sombra de uma nuvem movia-se através do
campo de cereais e ela viu o rio por entre as árvores.
– E podíamos ter isto tudo. – disse ela. – E podíamos ter tudo e a cada dia que
passa tornamo-lo mais impossível.
– O que disseste?
– Disse que podíamos ter tudo.
– Podemos ter tudo.
– Não, não podemos.
– Podemos ter o mundo inteiro.
– Não, não podemos.
– Podemos ir a todo o lado.
– Não, não podemos. Já não é nosso.
– É nosso.
– Não, não é. E depois de no-lo terem tirado, nunca mais o poderemos reaver.
– Mas não o tiraram.
– Vamos ver.
– Volta para a sombra. – disse ele. – Não te devias sentir assim.
– Não me sinto de forma alguma. – disse a rapariga. – Sei apenas como as coisas
são.
– Não quero que faças uma coisa que tu não queres fazer.
– Nem isso é bom para mim – disse ela. – Eu sei. Podemos beber outra cerveja?
– Tudo bem. Mas tens de perceber …
– Eu percebo – disse a rapariga. – Talvez pudéssemos parar de falar?
Sentaram-se à mesa e a rapariga olhou as colinas no lado seco do vale e o
homem olhou para ela e para a mesa.
– Tens de entender – disse ele – que eu não quero que o faças se tu não queres.
Estou perfeitamente disposto a ir em frente com isso se tiver assim tanto significado
para ti.
– E para ti não tem significado? Podíamos lidar bem com isso.
– Claro que tem. Mas não quero mais ninguém a não ser tu. Não quero mais
ninguém. E sei que é muito simples.
– Sim, tu sabes que é muito simples.
– Podes dizer o que quiseres, mas sei perfeitamente.
– Podias fazer uma coisa por mim agora?
– Faço tudo por ti.
– Podes por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor, por favor
parar de falar?
Ele não respondeu, mas olhou para as malas encostadas à parede da estação.
Tinham autocolantes de todos os hotéis onde haviam estado.
– Mas não quero que o faças – disse ele. – Não quero saber de nada disso.
– Eu vou gritar.
A mulher surgiu através da cortina com dois copos de cerveja e pousou-os nas
bases de feltro húmidas.
– O comboio chega daqui a cinco minutos – disse ela.
– O que é que ela disse? – perguntou a rapariga.
– Que o omboio vem daqui a cinco minutos.
A rapariga ofereceu à mulher um sorriso radioso, em agradecimento.
– É melhor levar as malas para o outro lado da estação – disse o homem. Ela
sorriu-lhe.
– Está bem. Depois volta para acabarmos de beber a cerveja.
Ele pegou nas duas malas pesadas e carregou-as dando a volta à estação, até ao
outro lado das linhas. De regresso passou pelo bar, onde as pessoas que esperavam pelo
comboio bebiam. Bebeu um copo de Anis no bar e olhou para as pessoas. Todas
esperavam sensatamente pelo comboio. Passou pela cortina de missangas. Ela estava
sentada à mesa e sorriu-lhe.
– Sentes-te melhor? – perguntou.
– Sinto-me bem – disse ela. – Não há nada de errado comigo. Sinto-me bem. 

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